Sobre as cantigas

Um dos aspectos que diferem o Jarê de outras religiões de matriz afro é a forte influência indígena tanto nos seus rituais como na sua cosmologia. O ponto mais importante dessa presença está na veneração, junto aos orixás do candomblé, de espíritos indígenas. Estes são conhecidos como caboclos, que é a antiga designação do índio brasileiro. A assimilação desses espíritos indígenas aos ritos do Jarê é tão marcante que, eventualmente, todas as entidades passaram a ser referidas como caboclos, fenômeno esse que pode ser entendido como uma “cablocarização” dos orixás1.

As cantigas entoadas durante o culto possuem um papel central no Jarê, pois é através delas que se faz o contato com os caboclos. Assim, para cada entidade existe um conjunto de cantigas específicas. Porém, as cantigas não são criadas por pessoas que frequentam o Jarê, mas são “trazidas” pelas próprias entidades através das pessoas durante a incorporação.

Durante a festa de Jarê, as cantigas são puxadas seguindo uma ordem de convocação dos caboclos respeitando suas linhagens. Para cada linhagem são entoadas músicas de chegada, incorporação e despedida, as quais podem ser cantadas diversas vezes dentro do seu momento, mas não em outra situação2.

O chamamento das linhagens de caboclo na festa de Jarê se altera conforme casa e festa. Em uma festa para Iansã é de se esperar que ela seja saudada logo após Ogum, porém em outros contextos é a Aldeia d´Água que se apresenta primeiro. Assim temos Ogum, seguido dos caboclos da segunda linhagem que pertencem à Aldeia d’Água, como Marinheiro, Sereia, Iemanjá e Mãe d’Água. Depois chama-se por Iansã (ou Santa Bárbara) e Xangô. Essas entidades são sucedidas pelos caboclos da terceira linhagem que é a Força da Mata, considerados os mais bravios por serem caboclos de índios guerreiros, sendo eles os guardiões do terreiro. São caboclos da Força da Mata o Sultão das Matas, considerado o líder da linhagem, Eru, Tomba Morro, Índio, Oxóssi, Sete Serra, Turco Leão, Jericó e Mineiro. Demos destaque a Sete Serra neste projeto por ser o caboclo de Pedro de Laura, que não voltou a ser incorporado desde a partida do curador. Há a linhagem do “povo velho” também referenciados como os nagôs: Nagô, Nanã, Oxalá, Balauê. Em alguns Jarês, ao sair a linhagem dos velhos, é dado lugar à entrada da linhagem de Boiadeiro, que se manifesta no raiar do dia e se transforma no guia espiritual dos mortais. Por fim, são as crianças, representadas principalmente por Cosme e Damião, mas que também têm outras formas: Doum, Tapuia, Crispiniano e Crispim.

No final da festa de Jarê, são cantadas as cantigas de despedida de todo o culto, sendo comum que essas serem músicas com pedidos para os que participaram, como proteção, orientação e felicidade.

As cantigas transcritas a seguir estão organizadas respeitando a ordem de anunciação dos caboclos na festa de Jarê. Esta sequência difere um pouco das apresentadas pelos estudos de Ronaldo Senna e Gabriel Bannagia3, mas segue a ordem que nos foi narrada pelas lideranças de Lençóis. Esperamos esse momento de escuta e leitura das cantigas proporcione uma experiência que te aproxime dessa religião afro-brasileira.

1 SENNA, R. S. Jarê: Uma Face do Candomblé. Feira de Santana: UEFS, 1998. p. 116. 2 SENNA, R. S. Jarê: Uma Face do Candomblé. Feira de Santana: UEFS, 1998. p. 116. 3 BANAGGIA, G. Conexões afroindígenas no jarê da Chapada Diamantina. Revista de Antropologia da UFSCar. 9 (2), jul./dez. 2017: 123-133. 2017. SENNA, R. S. Jarê: Uma Face do Candomblé. Feira de Santana: UEFS, 1998. pp. 115-158.